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domingo, 4 de dezembro de 2011

*** QUATRO REGIÕES BRASILEIRAS;UM ACIDENTE DE MOTO.

 Atenção ! ! !
VEJA TAMBÉM NESTE BLOG:

- COMPOSTELA - Dos Pirineus ao Fim da Terra (de bike)

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QUATRO REGIÕES BRASILEIRAS;

UM ACIDENTE DE MOTO


“A tragédia dos vegetais é ter raízes”
                                                                                                 (Mark Helprin)

Fotos e texto: Nilceu Mario Moro
                                                                                              moronilceu@gmail.com

A revista "DUAS RODAS" do mês de julho de 2012 publicou em parte este relato 

                                                            Novembro/2011

Foram muitas noites mal dormidas devido à indecisão de fazer a viagem: Vou ou não vou?

Às vezes quando chega uma oportunidade, nos falta a necessária determinação sem sabermos o porquê para uma empreitada que queremos à muito tempo fazer.

Enquanto isso, os preparativos continuavam... meio que “de arrasto”... Às vezes com entusiasmo e às vezes sem. Num caso destes, para qualquer pessoa com tendências fatalistas, seria uma fácil decisão: “- Não é prá ser; não vou!”.

Quando falo em preparativos para viagem, quero dizer em juntar as tralhas, preparar a motocicleta, uma rápida pesquisa de itinerário pela internet e mapas disponíveis e... sair.

GPS e Telefone Celular: Não uso.

Por mais que ache justo e respeite os longos preparativos de outros viajantes, esta não é a minha maneira de agir. Traço o “grosso” do itinerário pretendido e depois, na estrada as coisas vão fluindo.

Claro que não se pode deixar de ter detalhismos em itens necessários sobressalentes e de uso constante como roupas, material de higiene, medicamentos (principalmente os de primeiros socorros e moléstias que cada um individualmente está sujeito de acordo com suas características) e, algumas peças para a motocicleta...

Voltando ao “vou ou não vou”, acabamos indo. Eu e a Motocicleta.



Motocicleta:   Yamaha XT660          ano 2007

Motociclista:   Nilceu Mario Moro  ano 1948



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1º Dia, 21/11/2011  Pinhais – PR   à   Rolândia – PR (Paraná) 

(REGIÃO SUL)

Saí de casa, em Pinhais, região metropolitana de Curitiba, às 14:30 hrs e segui até Rolândia – Paraná, via Londrina.

Já estava escuro, não só pelo horário mas pela tormenta que se anunciava. Como eu já havia passado pelo centro da cidade de Rolândia, salvou-me a proximidade de um motel onde pernoitei... a motocicleta ficou do lado de fora do AP.

Nesta tarde rodei 438 km.
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2º Dia, 22/11/2011  Rolândia - PR   à   São Gabriel do Oeste – MS (Mato Grosso do Sul) (130 km após Campo Grande - MS)

(REGIÕES  SUL,  SUDESTE  E  CENTRO OESTE  DO  BRASIL)

Pouco adiantou eu não ter me molhado no dia anterior, pois amanheceu chovendo e assim foi durante boa parte da manhã.

É irritante a quantidade de pedágios nos estados do Paraná e São Paulo. É comum rodar-se apenas 30 km e já estar no seguinte, procurando o ponto morto da marcha da  moto, levantando a viseira do capacete, tirando as luvas, enfiando a mão nos bolsos para pegar o dinheiro, deixando moedas cair no chão, acionando o apoio lateral da moto, descendo da mesma para juntar as moedas quando o valor vale a pena, subindo na moto, pagando o valor do pedágio, esperando o troco, acomodando-o no bolso, recolocando as luvas, baixando novamente a viseira, engatando a primeira e, finalmente saindo para após 30 km fazer tudo novamente...

A Rodovia Raposo Tavares (SP) termina no grande lago do Rio Paraná, onde é a divisa de estados entre São Paulo e Mato Grosso do Sul.



Tem-se, atualmente, que aguardar a vez para passar por um trecho, pois a pista que cruza o rio/lago está em manutenção em uma parte.

É uma bonita obra onde o rio/lago (suas águas são verdes) é cruzado por pontes e aterros numa extensão de 13 km.



Fim dos pedágios. Ótimas estradas mantidas pelo DNIT (órgão do governo federal). Isto mostra-se possível.

Também muda radicalmente a paisagem. Agora planaltos a se perder de vista. Ora pastos de gado, ora campos cultivados, ora criação de avestruzes.... Dá orgulho de ver tal trabalho em nosso País.
                                                             
                        Emas (me pareceram selvagens)                                        
                                                                                                                          Criação de avestruzes

Estradas com retas infindáveis, somente diferindo do “Gran Chaco” argentino pelas ondulações e pela fertilidades destas nossas terras.

Alguma pancadas de chuva.

Pernoitei, neste segundo dia, em São Gabriel do Oeste, 130 km adiante de Campo Grande, capital  do Mato Grosso do Sul.

Rodamos (eu e a moto) neste dia, 791 km.
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3º Dia,  23/11/2011  São Gabriel do Oeste (MS)  à  Mirasol do Oeste – MT (Mato Grosso) (60 km adiante de Cáceres - MT)

(REGIÃO  CENTRO OESTE  DO  BRASIL)


Passei por Cuiabá, capital do Mato Grosso, e por Cáceres, tida como o “Portal do Pantanal Matogrossense”. Aves aos montes nestas paragens do Pantanal, notadamente as da família das psittacidaes cuja algazarra nos entardeceres é assombrosa pela quantidades de indivíduos.

Aí a estrada segue por um aterro devido às cheias anuais do rio Paraguai. Há cerca de onze passagens com pontes neste trecho aterrado para permitir a transposição das águas nas cheias do referido rio.

                                                                               
A paisagem continua a mesma, apenas desapareceram as emas e as avestruzes.

Pouca mas presente, chuva.
Jornada do dia terminada em Mirasol do Oeste, a 60 km adiante de Cáceres - MT.

Rodados hoje 861 km.
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4º Dia,  24 /11/2011  Mirasol do Oeste – MT  à  Ji-Paraná – RO  (Roraima) (340 km antes de Porto Velho - RO)

(REGIÃO   NORTE DO BRASIL)

Ji-Paraná é considerada o “Portal da Amazônia”. Estou agora na Região Norte do Brasil, na Amazônia!!!

                                                
                                           

                                                         Porto Velho - Rondônia

Clima e Chuvas:
Assim como eu havia ido caminhar nos Andes e dormir em barraca em pleno mês de junho, agora eu estava viajando de moto na Amazônia em novembro, época das chuvas...

Chuvas? Isto não são chuvas... São, isto sim, aguaceiros de proporções bíblicas só vistas por Noé e seus contemporâneos logo após ele, Noé, ter fechado as comportas e escotilhas de sua embarcação.

Minhas botas “impermeáveis”  de couro e “gore-tex” ficavam encharcadas de água por dentro.

Pela viseira do capacete corria água tanto pelo lado de dentro quanto pelo de fora.

O abrigo para chuva, cedia à insistência aquosa que penetrava pelas costuras, tecido de nylon "impermeável" e umedecia a roupa de baixo.

Quando a rodovia passava por dentro de cidades, pequenas ou grandes, via-se as pessoas puxando a água de dentro de estabelecimentos com rodos.

E o calor... Insuportável mesmo para os habitantes locais. Vai-se dormir com 32°C e acorda-se com a mesma temperatura. Durante o dia, com sol inclemente, chega aos 40°C. Os dilúvios pluviométricos são sempre bem vindos.

Rodovias:

Também na Região Norte as rodovias são boas, retas e infindáveis.

A fiscalização do trânsito é impraticável por parte das autoridades devido às proporções das extensões em relação à quantidade de veículos (poucos).

Minha velocidade de cruzeiro era de cerca de 110 km/h porém, as pick-ups 4X4 dos fazendeiros locais passavam por mim como se eu estivesse parado... calculo à uns 160 km/h.

Muitos modernos caminhões, a maioria de 9 (nove) eixos também andando nos seus limites de velocidade.

O velho problema de autonomia das motocicletas se fez notar fortemente aqui. Ouvi dizer que chega a haver 130 km de distância entre o último e o mais próximo posto de combustível. Passei a usar a proibida reserva de combustível dentro de uma embalagem de 2 litros de amaciante de roupas que eu costumeiramente costumo carregar. Salvou-me por uma vez de ficar na estrada desesperadamente pedindo para algum raro e veloz veículo parar.

Animais:

Vê-se às margens dos acostamentos das estradas, uma infinidade de animais silvestres mortos por atropelamentos. A maioria mamíferos e répteis. Lembre das velocidades dos veículos.

Ví um tamanduá atropelado de quase o tamanho de uma pessoa adulta (não fotografei, havia muito sangue). Imagine topar com um animal destes na estrada em cima de uma moto... Mesmo à comportados 110 km/h...

Pessoas:

Os traços típicos das pessoas naturais desta região são a cor da pele. Não é o considerado negro, mas de uma forte cor acobreada. Também não é prá menos; obteêm-se um “bronze” legal só de ficar na sombra. Claro que, como em todo lugar, existem também os branquelos. Estes vindos de outras paragens, o que é muito comum por aqui.

São pessoas amáveis e boas de conversa, com um sotaque que lembra o do nosso povo nordestino.

Muitas das pessoas com quem falei, tinham alguma espécie de vínculo com o estado do Paraná. Interessante.

Latitude e Longitude:

Uma das coisas gostosas de uma grande viagem é vêr-mos como movimentamos o Planeta com os nossos próprios “pés”. Notei que as antenas parabólicas das mesmas empresas de sinal de TV que na Região Sul apontam para um pouco acima do horizonte para o seu satélite, aqui apontam quase para o Zênite, para o mesmo satélite.

A diferença de fuzo horário em relação ao local da minha partida era de 2 horas.

Senti-me com isso, poderoso!

Floresta Amazônica:

Pensava eu ser o desmatamento ilegal da Amazônia uma coisa velada, escondida, só vista através de satélites. Mas não. É uma coisa escrachada, aberta para quem quiser ver pois, pratica-se, ainda atualmente, também às margens das rodovias.
As árvores "jovens" são cortadas e abandonadas

Como eu já disse, não é coisa de antigamente, não. Vêem-se hoje grandes áreas devastadas onde as pequenas árvores, também cortadas e que foram descartadas por não possuírem o necessário porte para o comércio, aínda jazerem abatidas nestes locais a espera de apodrecimento ou da fogueira.

É inacreditável como até as matas ciliares são sistematicamente exterminadas, sendo visto tal ato das beiras das rodovias sem que se consiga impedir tal fome de "progresso"...!!!(?)

Mata Ciliar? O que é mesmo isto?

Que se veja cortes de vegetação, tudo (mais ou menos) bem, pois pode ser algo consentido pelas leis mas, quem vai me convencer que matas à beira de rios sejam legalmente “raspadas” ao rés do chão? Ficando a terra nua e, entre outros malefícios, assoreando os rios com terra?





Pelos muitos e muitos quilômetros que rodei pela Amazônia, não percorri mais que 10 km onde a floresta nativa ainda se mantém até junto à rodovia.

Floresta Amazônica (raríssimos trechos à beira das rodovías)

Fora isto, prados imensos (onde originalmente havia florestas) acompanham a estrada sendo usado pela agricultura, pecuária ou, simplesmente devastado e abandonados. Somos todos responsáveis.

Árvores em crescimento cortadas (juntamente com as de grande porte) e depois abandonadas.

                                                                        

                                                                                

Por hoje, fiquei em Ji-Paraná – RO quando rodei 820 km.
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5º Dia  25/11/2011  Ji-Paraná - RO  à  Acrelândia – AC  (Acre) 

(REGIÃO NORTE DO BRASIL)

Seguindo viagem neste dia, a estrada foi subitamente interrompida pela passagem do Rio Madeira. A travessia é feita por balsa.



                                          Rio Madeira, importante tributário do Rio Amazonas - Rondônia

Passa-se de balsa, a poucos metros da barranca onde está a Bolívia, que é separada do Brasil neste ponto pelo rio Abunã onde também naveguei um pouquinho e que deságua no rio Madeira.

  Bolívia

Chuvas eventuais também neste dia.

Novamente na estrada, agora estou margeando a fronteira  da Bolívia no seu extremo Norte!

Por um breve percurso, entrei no Estado do Amazonas. Não há, neste trecho de estrada, tal indicação por placas. Vim saber depois de ter voltado, vendo mapas, que também estive naquele grande Estado tão cheio de lendas, histórias e riquezas das mais variadas espécies.
Com tempo seco, entrei no Estado do Acre. Mais um marco desta viagem pois, sempre eu havia visto este distante Estado como um lugar quase que inatingível, muito longe (e isto é relativo, né?) e carente de boas estradas. Ledo engano. É também um lugar de brasileiros.


O Acidente:

Depois da divisa, após alguns quilômetros, passei pelo posto fiscal de Tucandeira onde cumprimentei, como de costume, os policiais e fiscais daquele bastião. Não fui parado para inspeções.

Tucandeira é, originalmente, o nome de uma feroz formiga da Amazônia.

Logo após este posto, segue-se a estrada, como de hábito quase sempre reta como já foi dito, e agora, em um declive.

Rapidamente devo ter atingido a minha velocidade de cruzeiro, cerca de 110 km/h.

De um momento para outro, senti uma instabilidade na motocicleta deixando claro que um dos pneus estava esvaziando.

Rapidamente, em questão de segundos, o pneu dianteiro murchou completamente. Neste momento eu já havia desacelerado mas a moto continuava ainda a correr pela estrada “dançando” freneticamente ora na pista, ora no acostamento, agora de maneira praticamente descontrolada. O pneu completamente murcho "bambeava" solto no interior do aro da roda.

Eu pouca coisa tinha a fazer nestes poucos segundos enquanto tudo acontecia além de segurar firmemente o guidão e tentar manter um precário controle sobre a máquina.

É interessante lembrar de como a gente, paradoxalmente, se agarra justamente ao objeto instável e descontrolado (a moto neste caso, mas pode ser uma prancha de surf, um skate, uma bicicleta voando numa prova de cross...) que vai, possivelmente, nos arremessar ao chão ou a algum obstáculo pois, no momento, é a única “tábua de salvação” de que dispomos. Repito, é um grande paradoxo.

Estou, nestes segundos, ainda em cima da moto cheio de tensão, apreensão e desespero, esperando pelo desenlace prestes a acontecer... e, aínda, com a tênue esperança de não cair.

Olho para além do acostamento na esperança de ver uma macia e plana relva para onde eu pudesse jogar eu e a motocicleta mas, vejo um barranco de mais de dois metros de desnível abaixo onde, com a eminente queda, a desaceleração poderia ser muito brusca e perigosa (perigosa?).

Tento manter a moto rodando pelos dois pavimentos (pista e acostamento) na esperança de retardar ao máximo a queda (se acontecesse...) para que a velocidade baixe ao máximo possível.
Calculo estar a cerca de 80 km/h quando a moto, já em inclinação de queda, começou a atravessar a pista em diagonal. Não senti a pancada ao bater no asfalto, depois vim a entender o quão forte havia sido.

Fomos, eu e a moto, pela banda esquerda de arrasto pelo asfalto. Senti o capacete ser esmerilhado pela pista enquanto deslizávamos, eu e a moto, no chão. Incrível mas, neste momento, ainda deslizando, me passou pela cabeça com alívio: “ - desta eu me livrei”.

Enquanto eu estava em cima da moto descontrolada, eu não sabia qual seria o desfecho do acidente, pois poderia ser arremessado contra algum obstáculo ou voado por cima do meu veículo vindo cair sabe-se lá de que maneira, quebrando um braço, a clavícula, ou... o pescoço. Por isso o “alívio”.

Aí tive meu momento de glória: Escorregando por poucos metros pela pista tal qual um piloto de competição de “moto GP” ao cair (eles também caem!!!). Senti-me o próprio Valentino Rossi...

Paramos, eu e a motocicleta, na pista contrária a que eu estava indo, com a perna irremediavelmente presa sob a “menina”. Tudo isto não deve ter durado mais que cinco ou seis segundos.

A embalagem plástica de amaciante de roupas contendo 2 litros de gasolina, estava presa no lado esquerdo da bagagem, lado da queda. Chegou a ralar no asfalto mas não vazou... Daria uma bela fogueira se tivesse vazado, pois fonte de ignição é o que não deve ter faltado com as partes metálicas da moto atritando no asfalto.

Rodados hoje:  778 km...

A preocupação agora era com os “bólidos” que por ali trafegavam a 160 km/h... Com os caminhões de 9 eixos em desabaladas carreiras e, certamente, de difícil desaceleração...

Não demorou muito e surgiu um automóvel na minha direção. Deitado no chão comecei a acenar. O carro passou por mim pelo acostamento e parou a uma direção e distância seguras (para o caso de ser um assalto). Imediatamente saltaram do mesmo dois rapazes e uma moça e, em trabalho de equipe, dois deles passaram a cuidar do trânsito e o outro veio em meu auxílio. Quando consegui soltar a perna, imediatamente pus-me de pé e ajudei o rapaz a levantar a moto, esquecendo todos os procedimentos de cautela para com um recém acidentado.

Na moto, quebrou o pára brisas não original, o pára brisas original e a carenagem que envolve o farol além de ralar a proteção do punho esquerdo e o pára lamas dianteiro. Também esmerilhou partes da pedaleira e do apoio lateral da moto.  Milagrosamente, muito poucas avarias.

Eu não sentia nenhuma dor (haja adrenalina) mesmo com sangramentos de “ralamento” no braço esquerdo, pulso, ombro, joelho, cotovelo e testa (esta pelo atrito com o interior da parte de tecido forrada do capacete. O mesmo aconteceu com o joelho, cotovelo e ombro em relação às proteções acolchoadas destes). Eu estava usando roupa apropriada para pilotar motocicletas (apesar do calor) com proteções rígidas e/ou acolchoadas para as já mensionadas partes "raladas" e também para os quadris, coluna... além do capacete, luvas e botas.

Com efusivos agradecimentos, liberei as três pessoas que me ajudaram e voltei para o posto fiscal a cerca de um quilômetro de distância, empurrando a moto com a primeira marcha engatada, pois lá eu teria mais facilidade para conseguir ajuda para ir até um borracheiro com a roda dianteira.

Mais tarde, para quem eu contava sobre o acidente, quase que invariavelmente me diziam: “- Ainda bem que você não estava correndo muito...” O que não deixa de ser uma verdade por estas bandas daqui.

Fui muito bem recebido pelo pessoal do posto policial/fiscal de Tucandeira.

Pedi para usar o sanitário e aí, as coisas mudaram de rumo. Muito sangue na urina!

Comuniquei o fato ao pessoal e de imediato telefonaram para o SAMU de Acrelândia, uma pequena cidade de dez mil habitantes à 35 km dali. Eu com sede e não me deixaram beber água. Corretíssimo.

Chegou a ambulância e fui colocado e atado a uma maca. Fui levado para Acrelândia para um posto de saúde da prefeitura local, a “Unidade Mista de Acrelândia”. Este posto não dispõe de muitos recursos tecnológicos como por exemplo: Raio X, laboratório, etc. Para estas necessidades aciona-se a cidade de Rio Branco, capital do Acre. Porém a dedicação profissional e humana do pessoal dali é coisa de emocionar.

Lá chegando, o médico não estava presente, mas por telefone, o pessoal da enfermagem foi orientado a colocar uma sonda, via uretra, para que este, o médico, pudesse fazer uma avaliação do líquido do interior da bexiga.

Eu estava na sala de emergência rodeado por três enfermeiras que me perguntaram se eu permitia tal procedimento, a colocação da sonda.  Respondi:

“- E eu lá estou em condições de decidir ou exigir alguma coisa? Só sinto pelo fato de não estar preparado adequadamente com uma roupa de baixo mais bonitinha, pois em viagens de moto privilegía-se o conforto em detrimento da elegância. E a “roupinha” que eu estou usando no momento já tem alguns quilômetros rodados.”

Elas riram e tiraram minha roupa.

A introdução da tal sonda até a bexiga foi uma experiência delirante. Eu suava em bicas, sentia o corpo gelado, tinha náuseas e, as meninas vendo o meu estado, começaram a perguntar o meu nome e local onde eu me encontrava para avaliar meu estado de lucidez.

Pelo menos não era um enfermeiro que estava fazendo isto (com todo o respeito também à esta valorosa e heroica categoria masculina) . "Meno male".

Enquanto isto me espetavam o braço para aplicação de soro.

Paralelamente as trocas de informações pelo telefone com o médico continuavam e em determinado momento decidiu-se que eu seria levado par Rio Branco, a mais de 100 km de Acrelândia. Fui colocado novamente na ambulância e esta começou a rodar. Ainda dentro de Acrelândia, a mesma parou e entrou na mesma o médico. Muito boa gente. Conversamos, ele avaliou meu estado geral e o líquido que saía pela sonda. Decidiu então que eu permaneceria no posto de saúde de Acrelândia.

No posto passei a ser assistido também pelo médico de plantão do posto.

Foi-me introduzido na bexiga, via sonda, umas três ou quatro bolsas de soro afim de limpeza da mesma. Outro tanto de soro na veia.

E assim passei a noite. Sem ter almoçado corretamente naquele dia, sem ter jantado, sem tomar água, sem ter tomado banho, sem ter escovado os dentes, muito suado... etc. Por sorte, por comer pouco nas minhas viagens, não senti necessidade de ir ao banheiro pois, teria que arrastar junto comigo aquela parafernália de tubos e bolsas (três, a sonda continuava colocada).

Noite difícil, entubado e preocupado.

Apreensões e incertezas, motocicleta avariada la no posto fiscal de um lado, Rio Branco longe do outro lado, o que eu iria ter de fazer? Como estava minha saúde? Como despachar a moto para Curitiba? Como me deslocar de um lado para outro? Teria alta hospitalar logo? Surgiriam complicações de saúde?...
O dia finalmente amanheceu e foi-me servido um bem vindo chá com leite e pão com manteiga.

O médico de plantão, muito dedicado a exemplo do restante das equipes que se revezavam, retirou a sonda. Mais de um palmo de tubo!!!

Lá pelo meio-dia, fui liberado pelo médico com algumas restrições aconselhadas por este. Saí da cama pela primeira vez, fraco e tonto. Agradeci muitíssimo ao pessoal do posto de saúde e senti-me extremamente grato pelo Município de Acrelândia que me atendeu gratuitamente e de bom grado sem que eu fosse “filho” deste.

Acompanhado da minha trouxa que carrego no bagageiro da motocicleta, contratei um moto taxi e fomos até o posto fiscal onde estava a moto.

Lá retirei a roda dianteira da moto e a entreguei ao moto taxista juntamente com uma câmara nova para que as levasse a um borracheiro para a devida troca.

Recomendei a ele que observasse o serviço tendo cuidados especiais com o disco de freio, o aro de alumínio, a inspeção minuciosa no interior do pneu... Ele me respondeu: “- Pode deixar que eu também sou chato!”.

Não entendi este “também”...

Enquanto aquele anjo levava a roda, pus-me a trabalhar, ainda fraco e um pouco tonto (além do normal), retirando os pedaços dos dois pára brisas e parte quebrada da carenagem do farol e refazendo parte desta carenagem para proteção contra a água usando “silver tape” (fita adesiva prata). Este tipo de fita gruda mais que merda em tamanco...

Enquanto isso, eu ainda não havia decidido se voltava para Curitiba, se seguia viagem, se ia até Rio Branco e esperava uma recuperação que não sei quanto demoraria...

Agora, mesmo sob efeito de remédios contra a dor, todos os músculos do corpo me doíam. Doía quando eu respirava um pouco mais fundo, doía para passar a perna por cima da moto, doía para movimentar ambos os braços, doía para andar, doíam os músculos do peito ao levantar uma perna ou movimentar os braços... Espirrar ou tossir, nem pensar. Meus tornozelos mais pareciam um abacate, dos grandes, de inchados que estavam, também estavam inchadas as pernas.
Um abacate...




POSTO FISCAL DE TUCANDEIRA
Moto com os "cacos" da bolha e carenagem retirados, guidão e retrovisores alinhados, reparada com "silver tape", e aguardando a troca da câmara de ar.

Chegou a roda e acabei esquecendo de perguntar o que havia ocasionado o furo da câmara para um esvaziamento tão rápido.

Pronta a moto para rodar, agora eu tinha que decidir prá que lado ir pois eu não dispunha de nenhuma radiografia, ressonância magnética, exames de laboratório... que indicassem o meu estado de saúde:

- Ou iria para Rio Branco num hotel e descansaria e esperaria por uma plena (ou quase) recuperação que eu não sabia o quanto demoraria.

- Ou iria para um hospital em Rio Branco para exames mais detalhados através de aparelhos, o que poderia resultar num longo processo de tratamento com internação.

- Ou iria para Curitiba para tudo o que foi descrito acima.

Decidi irmos nos recuperar em Curitiba, em casa!  Eu e a moto.

Avaliei que, se eu estivesse possuído por alguma sequela em evolução, teria tempo de chegar à Curitiba em quatro dias antes que esta evoluísse a ponto de derrubar-me.

A minha intenção era de uma viagem bem mais longa, eu passaria para o Peru, iria até o Oceano Pacífico (por isto o pneu de reserva que pode ser visto nas fotos)... Bem, espero contar esta viagem completa em outra ocasião.

"Pior que não terminar uma viagem é nunca partir"  (Amyr Klink)

Foram rodados de Curitiba até aqui, no Acre, 3.668 km.

No percurso de volta, fiz a troca do óleo do motor em Cacoal – RO.
É uma cidade grande e que impressiona pelo enorme número de motocicletas da faixa de 125 CC.

Vê-se, na Região Norte do Brasil, as pessoas usando motos pequenas como meio de transporte mesmo em estradas em lugares isolados e de grandes distâncias.

Saem para a estrada numa boa, como se fossem, por exemplo, de Curitiba à Paranaguá (80 km.) usando o capacete, camiseta e bermuda. Normalmente em dois numa moto.
Por ser tudo tão longe nesta região, algumas distâncias para eles se tornam relativamente pequenas. Costumam, muitas vezes, pilotar deitados sobre o tanque de combustível e, também às vezes, com os pés sobre o lugar do carona quando este está desocupado. Tudo isto para conseguir uma maior velocidade e minimizar os violentos impactos do vento ao cruzar com velozes caminhões.

Durante a volta, mesmo com a moto parada, eu a derrubei por duas vezes. Acho que devido à uma certa fraqueza, um pouco de falta de coordenação e ao tornozelo muito dolorido. Tudo, certamente, ocasionado pelos eventos extras ocorridos.

Com tudo isto, mesmo assim, tive a certeza que, em uma jornada como essa, o durante é mais importante do que o final...

A viagem de volta durou 4 dias. No último dia, de São Gabriel do Oeste-MS à Curitiba-PR, rodei 1.219 km e cheguei em casa, bem tarde da noite, atrapalhado ainda com fuzos horários diversos.

Na manhã seguinte, me dirigi a um hospital em Curitiba onde fui encaminhado para a triagem com uma enfermeira para decidir por qual especialista eu seria atendido.

Nisso entrou na sala um senhor grandão, mancando.

A enfermeira lhe disse, “- Doutor, que coincidência! Este paciente é para o senhor!”

O simpático doutor me encaminhou para a sua sala.

Dr. Diego Valderrama. Colombiano.

É nefrologista e motociclista inveterado.

Dr. Diego Valderrama e eu, no "Pinheirão" onde há encontros semanais de motociclistas - Curitiba

Tem ele computado mais de 250.000 km rodados de moto, já possuiu mais de 18 motocicletas, atualmente possui uma BMW GS 1.200 para viagem e uma Agrale 2 tempos para uso do dia à dia...

Mostrou-me a parte de trás da sua perna cheia de hematomas devido ele ter derrubado a moto parada recentemente, por isso mancava. Me conformei.

Disse que certa vez ficou 23 dia de cama f..... devido a uma queda de moto.

Me disse: “- Essas motos é f... , né cara? A gente nunca deixa delas apesar de tudo”.

Desnecessário faz-se dizer que conversamos mais sobre estradas do que sobre o caso que lá me levou.

Pediu um ecograma do abdômen, radiografia dos dois pés, exame se sangue e exame de urina.

Pronto os resultados dos exames, retornei ao médico com eles.

Nada quebrado porém, desconfio que algo tenha acontecido com alguma(s) costela(s) (uma trinca talvez) devido ao esforço dolorido ao respirar mas, como não me queixei disso, esta radiografia não foi feita... (Sete anos e dois meses após, ao fazer um Raio X do tórax, viu-se que eu havia quebrado duas costelas naquela queda...)

Urina ainda com traços de sangue.

Dois pequenos cistos no rim esquerdo (normal para a minha idade).

Inchaço no corpo (bem que eu havia notado que tinha “engordado” nesta viagem...)

Bem, creio que esteja tudo bem, pois ele pediu novo exame de urina e sangue apenas para daqui a um mês, quando voltaremos a conversar sobre motos.

Acredito que o sangue surgido na urina após o acidente, deveu-se ao deslocamento interno dos rins (assim com os demais órgãos) devido à violência da queda.

Pois é, então. Esta é a história: Em 8 dias e meio rodei 7.371 km. Fui de Curitiba até o Acre de moto, fiquei internado em hospital e voltei, de moto.
Foram quatro regiões e sete estados brasileiros visitados.

Creio que, apesar de tudo, valeu a pena, pois segundo o grande poeta português:
                         “TUDO VALE A PENA SE A ALMA NÃO É PEQUENA”.
                                                                               (Fernando Pessoa)

         Novembro/2011
Nilceu Mario Moro

(fotos e texto: Nilceu Mario Moro)

moronilceu@gmail.com

             A revista "DUAS RODAS" do mês de julho de 2012 publicou em parte este relato    
                                                                        
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